Crônica de uma noite de tremor no céu


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(Na madrugada de segunda para terça-feira nosso colunista Felipe Mortara estava trabalhando num post sobre o que muda em nós quando viajamos. A certa altura o Boeing 777 da American Airlines, que voava entre Dallas e São Paulo começou a balançar muito. Ele nunca se viu escrevendo uma espécie de relato testamento. Veja o que passa pela cabeça de um jornalista munido de seu computador durante momentos de desconforto).  

13 de março de 2017, 20h18min, horário de Dallas

Voo AA 216: Dallas – Guarulhos

20:18 – Turbulência bem forte e prolongada se inicia.

Caso algo ocorra, que o mundo saiba que parti em paz, feliz com as pessoas com quem convivi, que tanto me ensinaram, que me engrandeceram e que me tornaram um ser humano que adora a vida e os detalhes dela. Que parto com a neve de Lake Tahoe na memória, com os dias de esqui, mas também feliz com as dezenas de viagens e de lugares por onde andei. É parte do jogo, quem voa muito corre o risco partir voando, mesmo com as probabilidades baixíssimas disso acontecer. Medo é algo irracional, é assim mesmo, é inevitável. Penso então, que se hoje eu me for, vou agradecido por tudo o que vivi.

20:24 – No meio do tremor, uma sensação de plenitude me envolve.

Há algo de leve em mim, despedir-me já parece rotina nesses anos trabalhando como jornalista de turismo. Claro, para quem fica é sempre pior. Mas há também algo de doloroso em sempre partir até não saber mais onde chamar de casa. É a dor e a delicia de ser um viajante, de ser um quase nômade. E é nas horas de pânico à bordo e na tensão que toma de assalto a maior parte dos passageiros que começamos a pensar nessas coisas: em pertencer, e em sempre partir. Deixo esse pensamento de lado e escrevo mais rápido a cada vibrada do avião.

20:30 – Me dou conta que nunca peguei uma turbulência tão forte quanto essa antes.

Talvez turbulências só sejam tão assustadoras assim porque as pessoas não pensam na morte com a frequência necessária para aceitá-la. Nossa obsessão por controle é tamanha que não conseguimos lidar com o não termos. Um ser humano apenas, lá na frente do avião tem o controle, e caso ele o perca, um segundo homem sentado à sua direita nos teria todos em suas mãos. Essa sensação apavora. Não ter essa falsa impressão de controle é realmente apavorante.

20:33 – Pausa, balança mais forte.

“Como os senhores podem perceber estamos passando por uma zona de turbulência, por favor mantenham os cintos afivelados”, anuncia o comissário de bordo. Aliás, quem é que chama aeromoço de comissário em um momento de nervosismo? Só quem não está tenso. A bem dizer, acho que estou até que à vontade o suficiente para chamá-lo de “ei, amigão” se preciso fosse. 

20:38 – Mais tremedeira, o avião está embicando.

Lembro do bife de fígado acebolado da minha Vó Lucy. Aliás, Lucy era o nome da cadelinha pincher que o motorista do taxi levava no colo ontem, quando me levava junto com um grupo de jornalistas, da estação de esqui de Squaw Valley até nosso hotel. Será que algum dia vai ter cachorro batizado em minha homenagem?

20:41 – Parece que estabilizou, as vibrações da poltrona diminuíram.

Me deu vontade de assistir a mais um show dos Rolling Stones, de abraçar meu pai na porta do trabalho dele, de enrolar na cama numa quinta-feira de manhã com a melhor pessoa para isso. 

Meu vizinho assiste impávido a um filme com Bradley Cooper. Lembro da primeira vez em que deslizei sobre uma onda. Do calor do Saara, o frio do Himalaia, as bolhas no Caminho de Santiago de Compostela. Uma raivinha paulistana de admitir que a melhor pizza da vida que comi não foi nem em São Paulo nem em Nápoles, mas em Miami. Vou sentir falta daquela lichia imensa da Tailândia e das micheladas no México. Os tambores da Polinésia Francesa. Aqueles jardins de coral na Austrália.

20:52 – Mais um chacoalhão, um gritinho lá no fundo.

Curioso, não acordei hoje achando que escreveria esse tipo de texto com tom de despedida e melancolia. Durante as supostas nove horas entre Dallas e meu pior aeroporto favorito, o de Guarulhos, eu adiantaria uma das três reportagens a escrever nessa semana, e quem sabe assistiria um filme. Pelo jeito meus editores podem ficar na mão (já registro aqui as minhas desculpas) e eu vou partir sem ver o polêmico polarizador de opiniões La La Land. 

Se está difícil para mim que sei apreciar uma turbulência, quem dirá para os que temem esse pássaro de asas de ferro? Sobre o outro não posso saber…

20:59 – Relembro do pouso de emergência em Frankfurt com a minha mãe.

Nesse instante tenho certeza de uma única coisa: instabilidades climáticas à parte, tô com uma baita de uma fome. Já nem sei há quanto tempo não passo por uma turbulência dessas. Já não importa. Do lado de fora uma bela lua cheia parece observar-nos em desespero. Opa, acho que já não sacode ha alguns minutos. Vários minutos, na verdade.

21:27 – Uma voz grave interrompe meus devaneios neste teclado: “Chicken or pasta, sir?”.

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