O que eu aprendi fazendo o Caminho de Santiago a pé?


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Em 2015, Felipe Mortara fez o Caminho de Santiago de Compostela a pé e nesse texto ele contou tudo sobre os impactos dessa experiência. Confira!

Desde que fiz o Caminho de Santiago, entre setembro e outubro de 2015, muita gente me pergunta tudo a respeito. “Mas como é?”, “é transcendental?”, “você sentiu alguma coisa diferente?”. Mais de um ano e meio depois de chegar com a sola do meu pé até a cidade espanhola de Santiago de Compostela tendo saído da França 32 dias antes, eu ainda tenho muita dificuldade de sintetizar as emoções e vivências.

O Caminho pode e muda a vida de muita gente. Mesmo com mais de 278 mil peregrinos registrados em 2016, principalmente depois do lançamento do livro Diário de um Mago, de Paulo Coelho, a coisa ainda preserva uma essência danada. E tudo vai muito além do misticismo. Aliás, os 800 quilômetros entre Saint Jean Pied de Port, nos Pireneus franceses, e Santiago de Compostela, na Galícia espanhola, são tão 800 quilômetros quanto ir e voltar de São Paulo ao Rio de Janeiro.

Caminho de Santiago

Ué, mas então porque ir até a Europa para caminhar? Pois é, aqui entra o lado único e singular do Caminho. Como tem muita gente fazendo essa rota há mais de mil anos o que o Caminho de Santiago tem de diferente é a energia. Acredito que não seja por ser mais abençoado do que outros pedaços de chão mundo afora. Muito pelo contrário, muitos trechos são tão graciosos quanto margear a Via Dutra ou penetrar um extenso canavial melancólico. A diferença é que tem humanos por toda a parte.

Afinal, o que é que o Caminho de Santiago tem?

Quem disser que é um percurso sem borogodó ou está mentindo ou não entendeu nada. Eu resumiria como “um acumulado de energias”. Todas as crenças, todas as reflexões, todos os questionamentos, todas as intenções de transformação, todas as meditações das milhares (milhões?!) de pessoas que passaram por ali ao longo dos séculos. Tudo isso paira no ar. Vai da capacidade de cada um absorver o que está quicando.

Caminho de Santiago

Nos últimos anos pessoas do mundo inteiro, crentes em várias religiões, de todas as idades, resolveram que em algum lugar daquele trajeto poderia estar a resposta de suas perguntas. É bonito ver pessoas que nada têm a ver entre si se transformando em algo comum. Gente alta, gorda, baixa, barbada, cabeluda, sorridente, carrancuda, simpática, preocupada, metódica, suja, gentil. Todos entram caminhantes e saem peregrinos.

E por mais que o verbo peregrinar venha associado imediatamente à religião, afirmo sem dúvidas de que não se trata de um caminho religioso, mas espiritual. E reforço que já não é mais uma rota apenas católica, mas de qualquer pessoa que acredita em algo. Até mesmo na dúvida.

Mas qualquer um é considerado peregrino? Oficialmente, não, apenas os que cumprem a pé os 100 últimos quilômetros do percurso, partindo de Sarria. Ou então 200 quilômetros de bike saindo dos arredores de Ponferrada. Mas informalmente eu te conto que os que começaram mais atrás, mais para perto da França, inconscientemente concedem maior ou menor legitimidade a outro peregrino de acordo com a distância percorrida e o tempo de estrada.

Ah, você deve pegar em qualquer igreja no começo do percurso a sua credencial de peregrino e a cada parada ir carimbando. É a prova de que você fez o Caminho e com esse lindo documento você retirará sua compostelana, o certificado de peregrino, em Santiago de Compostela.

É claro que nem todos dispõem de pelo menos 30 dias para percorrer o Caminho Francês por inteiro, mas os chamados turigrinos, que entram nos quilômetros finais, simplesmente não terão a chance de entender a fundo a complexidade do roteiro. Eu me atrevo a dizer mais. Eles ficam praticamente só com a parte ruim, já que é normal sentir bastante dor e desconforto nos primeiros 3 ou 4 dias, e os laços afetivos com os outros peregrinos custam algum tempo a se formar.

Mas por que aquele lugar?

Porque acredita-se que ali estejam enterrados os restos do apóstolo Tiago, que saiu da Terra Santa para espalhar a palavra de Jesus Cristo pela Península Ibérica. O mensageiro teria se apaixonado pela região e criado vínculos tão fortes com a área da Galícia, que seu corpo fora enterrado ali. Foi só durante o reinado de Alfonso II, entre 792 e 842 d.C. com a descoberta do que acredita-se até hoje como sendo os restos mortais de Tiago, foi erguida a Catedral de Compostela e iniciaram-se as peregrinações oriundas de toda Europa. Durante séculos os católicos professavam que quem fosse até lá seria redimido de seus pecados para sempre. Quase uma Meca dos cristãos.

Cidade de Viana

E no percurso onde afunilavam as estradas foram surgindo os chamados Caminhos de Santiago. O mais famoso é o Francês, que oficialmente começa em St. Jean Pied de Port, na base dos Montes Pirineus, cordilheira que divide Espanha e França. Após o primeiro dia de caminhada o peregrino já dorme em terras espanholas. O Caminho do Norte ou Caminho Primitivo margeia o Oceano Atlântico e o litoral do País Basco e é o mais duro, em termos de ascensões e declives. Já o Caminho Português, menos procurado, revela belíssimas paisagens, apesar de ser o menos bem estruturado de todos.

Entrada Pamplona

Os caminhos não nasceram à toa e ao longo deles vários pequenos povoados se estabeleceram e têm nos peregrinos sua maior fonte de renda. No Caminho, uma vila com mil pessoas é considerada enorme a um dado momento. Você cruza povoados pequenos que respiram o Caminho de Santiago e que dele vivem. Uma cidade como Burgos, com 175 mil habitantes, é uma megalópole quase. Albergues públicos e privados, restaurantes, pequenos mercados e cafés. Em poucas cidades há artigos para peregrinos, não conte comprar nada a não ser comida.

Como é o dia a dia no Caminho de Santiago?

Como diz o outro: vareia. Na real, varia pouco. Calma, não é nada monótono ainda que demore um pouco pra engrenar. Experimente sair de casa e andar 15 quarteirões com uma mochila nas costas. O que você sente quando começa a caminhar? Nada? Pois é, os primeiros passos do Caminho de Santiago são iguaizinhos. Só que você vai seguindo flechas amarelas ou a imagem da concha de vieira, símbolo do Caminho. E a coisa toda vai aos poucos se transformando. Tente apenas caminhar, sem ficar matutando demasiado. Contemple. Os primeiros 4 dias estão entre os meus 7 dias mais bonitos do percurso.

Não vá achando que ao se fantasiar de caminhante, com sua bota laceada (JAMAIS leve uma bota zerada!), com suas roupas respiráveis e impermeáveis novas, chapéu estilo safári, mochila reluzente com uma concha de vieira pendurada você virou peregrino. Nada disso! Acredite: por um bom tempo você não é porcaria nenhuma. Um pequeno algo tateando o funcionamento de um universo completamente novo. Comece humilde, pianinho, respeito tudo e todos. Escute, escute, escute. Aos poucos você vai se tornando peregrino. Devagarzinho, pequeno gafanhoto.

Atenção para as botas. Conselho, sigam bem essa dica.

Não é nada evidente sintetizar essa transformação, ainda mais enquanto se está caminhando algo entre 17 e 25 quilômetros por dia. A cabeça vai e volta a cada passo, você acha que sabe tudo, mas o que precisa é aceitar sua impotência e transitoriedade. Você virou uma máquina de andar.

Onde comer, beber e dormir no Caminho de Santiago

Para ser uma máquina eficiente precisa se abastecer e repousar bem. Enfie na sua cabeça que o propósito da sua vida andarilha não é chegar em lugar nenhum. “Mas como não!?!?!?” Ou seja: a base para tudo é você se alimentar e dormir bem. Essa é a essência, filhão e filhona. Só chegará lá quem estiver bem consigo mesmo. Afinal, o caminho é para ser gostoso e engrandecedor.

Não confunda peregrinar com penitenciar-se!

Tem muito supermercado e quitandas, leve sempre frutas frescas e secas, coma de hora em hora, quando descansar. Beba água como se estivesse num deserto. Há fontes potáveis em boa parte do caminho e também vendas com água mineral a cada 3 ou 4 km. Ninguém morrerá de sede ou fome.

Os menus peregrinos custam entre 7 e 15 euros e costumam dar conta da fome de qualquer um. Costumam incluir entrada, prato principal, sobremesa e uma bebida. Sim, inclui vinho e muitas vezes uma garrafa por pessoa. Claro, respeite seus limites para não passar o dia seguinte ou a tarde toda se lembrando da refeição. Eu praticamente só jantava e no almoço, um lanche leve.

Jantar peregrino em Zubiri, diversas pessoas diferentes sentadas juntas em duas mesas.

Jantar peregrino em Zubiri

Alerta: é muito difícil ser vegetariano ou vegano no Caminho de Santiago, já que a base da alimentação peregrina são sanduiches de presunto cru e queijo, el famoso jamón con queso. Claro, dá para tirar a carne dos pratos, mas toda refeição traz proteína animal. E na real os espanhóis ainda não entenderam essa coisa de vegetarianismo. Tenha paciência também com isso, mas em geral peregrinos são bem tratados.

À noite você dormirá em albergues públicos ou privados, com diárias entre 4 e 20 euros. Muitas vezes não há vagas nos públicos e você deverá achar um privado, geralmente mais bem cuidados. Mas eu tive a melhor noite da minha viagem num albergue público, o Hospital San Nicolás, em Puente Fitero, dormindo no altar de uma antiga igreja com mais de 800 anos. Um absurdo. O carinho humano com os peregrinos é algo inestimável. Não esqueço nunca do jantar no Refugio Acácio e Orietta, nem da gaúcha Natália a cuidar de minhas primeiras bolhas no Albergue Estrella Guia, em Puente de la Reina.

Albergue de Acácio e Orietta

Os quartos podem ter de duas a 30 beliches e 30 humanos dormindo cansados e exauridos roncam, e muito. Se não está acostumado, se habituará rápido a usar tampão de ouvido (não deixe de levar!) e máscara para os olhos (sempre tem alguém que ‘esbarra’ no interruptor às 4 da matina).

Municipal Bercianos no caminho de Santiago

Municipal Bercianos

Descansando pelo caminho.

No fundo, o Caminho de Santiago é uma grande experiência comunista prática, já que os luxos disponíveis são poucos. Diria que não chegam a ser luxos, mas pequenos confortos, como um dia num quarto duplo privativo (a partir de 25 euros para duas pessoas) ou num dos 4 Paradores, redes estatal espanhola de hotéis confortáveis que operam em prédios históricos (eu reservaria hoje uma noite no de Santiago, apenas inesquecível) ou uma refeição fora do menu peregrino ou um vinho melhorzinho (com 3 ou 4 euros já estamos falando de coisas muito boas, principalmente na região da Rioja e no Bierzo).

Devo ir com familiares, amigos ou namorado(a)?

Sendo curto e grosso: recomendo ir sozinho. Você pode até pensar que se trata de um caminho solitário, mas não é. A não ser que você queira. E por que não é? Porque as pessoas precisam trocar para crescer, porque ali você é membro de uma família que nasce nos primeiros passos e que vai ganhando e perdendo parentes até chegar ao objetivo final.

Nos Pireneus

Inclusive, no começo do percurso é muito comum encontrar pessoas que não estão indo para Santiago. “Mas como é possível? Então que esse infeliz está fazendo aqui?”. Pois é, muita gente faz o trajeto ao longo de anos, durante alguns dias livres disponíveis. Soube de uma turma da Áustria que havia saído dos arredores de Viena há 15 anos e que, finalmente, naquele ano de 2015 chegariam a Santiago.

Vou te contar um segredo aqui: o Caminho começa na casa e no coração de cada um.

Todo mundo cuida de todo mundo, todos se conhecem de vista. Fiz excelentes amigos no Caminho e conheci pessoas muito especiais. O aprendizado humano foi monumental. Sozinho você está mais aberto, mais acessível e sem perceber acaba permitindo que as pessoas interajam mais contigo. Claro, conheci famílias caminhando juntas numa boa, mas vi amigos brigarem e perceberem que o ritmo de cada um era o mais importante. Se somos diferentes, nossos passos não têm porque serem iguais. Mas ali somos todos peregrinos. 

Dá para turistar no Caminho de Santiago?

Não, lamento amigo, mas você não só não está indo para turistar como a rotina de caminhar o impede um pouco de ficar flanando e contemplando monumentos. O que você vai fazer é outra coisa e por isso que o Caminho conta com essa infraestrutura de turismo peregrino, mais barato e não badalado. Mas é claro que, por estar caminhando na história você está se enchendo de novas informações e engrandecendo o espírito.

Centro de Pamplona, na Espanha

Centro de Pamplona, ainda no começo da peregrinação

Pessoas no teto da Catedral de Santiago de Compostela

Já no final, no teto da Catedral de Santiago de Compostela

Recomendo muito prever uma parada de 1 dia a cada 6 ou 7 caminhados. Eu mesmo turistei em León e Burgos, apesar de tempo curto. E claro, em Santiago, deixe-se envolver e considere ao menos dois dias por lá. É tão incrível a sensação de que você conquistou aquilo, que aquele mundaréu de prédios históricos te pertence, sabe?

Mas por que você está fazendo o Caminho de Santiago?

No meu caso a resposta era bem prática: porque sou jornalista e estou escrevendo uma reportagem. Momento jabá: leia tudo neste site especial que fiz para o Estadão ou então leia em PDF. Mas se por um lado comecei a empreitada todo focado em narrar e investigar o Caminho de Santiago, por outro, me vi imerso numa teia de vivências e percepções que me tornaram peregrino também. E cada um que me respondia ou contava espontaneamente os porquês de estarem no Caminho me trazia uma história nova, uma visão diferente, uma série de motivos únicos. Por mais que o Caminho homogeneíze os peregrinos, ele preserva o mais profundo da intimidade e individualidade de cada um. Isso é muito bonito.

Que conclusões tirei do Caminho?

Que minhas perguntas eram poucas e podem simplesmente não esgotar. Por sinal, conversando com muitos peregrinos percebi que voltamos sempre com mais dúvidas. E se você retornar todo esclarecido parece que não entendeu. Você trará sempre mais para casa. Desde bolhas até dores crônicas, como a fascite plantar que me acomete por quase 2 anos já – faço alongamentos diários. Até mais amigos, mais visão de mundo, mais tolerância a desconfortos, mais força física, mais lucidez espiritual. Voltará mais capaz de se organizar, mais introspectivos, mas ao mesmo tempo mais socializável. Mais magro física e mentalmente, os problemas não somem, mas parecem se reconfigurar sob uma outra perspectiva. Ficam mais carregáveis, como se aprendêssemos a ajustar a mochila da vida. E sim, o Caminho de Santiago tem alguma coisa especial que nenhum outro lugar tem.

Buen camino!

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  • Rosangela

    Muito bom e concordo com você o caminho não só começa em casa mas também começa de dentro pra fora …
    Me preparando pra fazer o meu caminho porque acredito que ele é único cada um tem o seu com propósito diferentes …
    Obrigada por compartilhar o seu

  • Adorei a sinceridade no texto. Tenho vontade de fazer o caminho completo, mas estou aguardando a oportunidade de reservar mais de um mês para isso.

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