Por que damos dicas?
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“Fe, o que eu não posso perder em Cartagena?”. “Que lugar na Europa ainda é incrível em novembro?”. Sou viajante desde pequeno e trabalho como jornalista especializado em turismo há pelo menos 6 anos. E uma vez a cada dois dias alguém me procura pedindo dicas de viagem, algo super natural. Geralmente são dúvidas sobre algum lugar específico. Mas também perguntas mais vagas. Muitas vezes vêm de amigos, outras, apenas de conhecidos. Muitos estranhos me abordam pelas redes ou conseguem meu e-mail e até mesmo meu Whatsapp. É bom e ruim ao mesmo tempo.
Afinal, por que a gente dá dicas?
Para a maior parte das pessoas, trocar dicas de viagem é como trocar receitas de comida. Algo em você espera sinceramente que aquela pessoa possa viver uma mesma experiência, contemplar um mesmo ângulo, sentir um mesmo sabor que você sentiu. Dar dicas é uma das interações mais lindas que há. Você orienta as pessoas como se fosse o único que enxergasse em meio aos cegos.
Sua vivência legitima suas palavras. Você se torna uma espécie de especialista por eliminação. Se você foi, você sabe mais do que eu, que não fui. Visitar um lugar implicitamente significa que você vai ter uma percepção plural sobre ele. Só quem vai sabe o cheiro, o gosto, o tamanho, os sons, etc… E você pode contar tudo ou não. A seu critério.
Dicas são uma commodity afetiva. E como afeto não deve ter outro valor senão carinho e amor, as pessoas entregam barato – geralmente de graça – e na esperança de oferecer o melhor ao outro. E também, de receberem os conselhos do outro sobre algum destino quando precisarem. Tudo funciona como uma grande roda da vida. O mundo dá voltas, afinal.
E dicas são mercadoria em abundância, tanto que o maior site de turismo do planeta hoje é um fórum em que viajantes dão notas e comentários sobre estabelecimentos e serviços (estou falando, claro, do TripAdvisor). E quando há excesso de oferta, a regrinha do mercado explica: a demanda abaixa. Isso porque também há uma vastidão de dicas imprecisas ou muito ruins. Ou excessivamente parciais. Traduzindo: você tem certeza de que foram postadas pelos amigos e familiares do dono daquele hotel ou restaurante.
Dica é igual beijo, você manda para quem quiser
Tenho amigos que guardam seus roteiros de viagem como verdadeiras joias. E compartilham (gratuitamente, claro) com outros amigos e conhecidos. De fato, um planejamento de viagem bem feito, testado e ajustado, é um baita de um presente. Uma grande mão na roda e algo que humaniza e desburocratiza um pouco a viagem. Tendemos a considerar algo mais próximo quando é feito por alguém que também não é profissional do ramo.
Ao aceitar um compilado de dicas – um script pá-pum, todo prontinho – é preciso ter em consideração de que iremos viver a viagem do outro. Estamos abrindo mão de pesquisar um pouco e achar um restaurante ou hotel que tenha mais a nossa cara. Automaticamente estamos topando ir nos museus e outras atrações que interessam mais ao autor da programação. Claro, pode ser que haja uma extrema afinidade, que você confie nessa pessoa de olhos fechados e, daí há menos riscos. Mas ninguém é igual nos gostos e bagagem de vida. E isso é bem bonito.
Garimpar dicas, procurar aqui e ali orientações que te façam sentido e que tenham a ver com o que você se interessa é um ótimo primeiro passo para aproveitar ao máximo cada lugar. Estude um pouco por você antes da partida, não se deixe pautar totalmente pela vivência de alguém.
E os profissionais de turismo, devem fazer o quê com seu conhecimento?
Para quem viaja e não trabalha com turismo, uma dica é uma dica. É um zelo, uma gentileza, uma troca sincera sem intenções. Isso é lindo. E deve continuar assim. Mas para quem trabalha na indústria do turismo uma dica não é só uma dica, é mercadoria. Aí entra o dilema. O que é commodity e o que é seu patrimônio? E como quantificar e precificar seu ganha-pão?
“Nossa, mas você vai cobrar da sua tia por dicas de viagem?”, são dilemas que esbarram na rotina de profissionais do segmento. Todo médico, dentista, psicólogo, advogado da família atende um parente ou amigo de graça? Não sei responder, cada um lida com isso à sua maneira. Mas cabe discutir.
Num mundo em que cada vez mais informação está disponível gratuitamente nas redes, em que as trocas se dão numa velocidade colossal, o conhecimento profundo está sendo desprezado. De um lado, as pessoas querem tudo mastigado, planos de viagem prontos, tudo objetivo e direto. Por outro, as vivências se tornam cada vez mais rasas e superficiais. O que turismo tem de poderoso é ensinar de forma multidimensional: não é curso, não é sala de aula, não tem na esquina de casa.
Acredito que quem detém esse conhecimento não pode apenas trocá-lo por mais conhecimento. Infelizmente dica não paga boleto, dica não é aceita como moeda no restaurante, nem na quitanda (lembrei muito do vídeo “Pagamento” do Porta dos Fundos). É preciso criar maneiras de remunerar e valorizar essas dicas. Tenho visto mais e mais a permuta virar moeda de troca – não apenas no turismo, mas em muitas relações comerciais – mas trata-se de uma troca perigosa a longo prazo. Principalmente quando chega o famigerado fim do mês.
Aliás, nem chamaria de dicas, colocaria como “sabedoria e expertise”. Sim, viajar é uma das mil maneiras de repousar, de relaxar, de recarregar energias. Mas também de expandir horizontes e repertório, de engrandecer cultural e intelectualmente.
Se viajar não fosse algo tão complexo, intercâmbios seriam para o litoral ou para o interior mais próximo da sua casa. E, se conhecimento não fosse patrimônio, consultores, médicos e psicólogos trabalhariam apenas com escambo.
Altier moulin
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